Como recentemente mudei de endereço físico, fui forçado a remexer em muita coisa. O resultado, além de fortes dores nas costas, veio também de modo interessante, na forma de muitas memórias, a maioria bem agradáveis. Estas breves linhas dizem respeito a uma delas.
Quando minha adolescência já ia alta eu morava lá em minha querida cidade natal, Recife. Nos meus então curtos dezessete anos de vida, eu possuía convicções bem peculiares. Uma delas era a seguinte: eu não gosto de música. Explicando, naquela época eu simplesmente detestava com todas as minhas forças o modismo da discoteca, modismo este que nos era empurrado à força por algumas daquelas novelinhas globais. Detestava ainda mais o tropicalismo, o qual minha turma e eu chamávamos carinhosamente de tropicalixo, além de não suportar praticamente tudo que vinha sob a chancela da MPB. Sobre alguns amigos que passavam brilhantina no cabelo para imitar o cara do “Greaze”, então, é melhor falar nada, senão corro o risco de cair na chulice. Assim, em absolutamente todas as ocasiões que havia festas, encontros e barzinhos, por exemplo, eu era constrangido a escutar estes tipos de música. Cansei de recusar convites para festinhas e saídas por conta disso e tomei a pecha de ser um cara difícil. Ainda pior, tentar sintonizar uma rádio que prestasse para gravar uma boa fita K7 era uma tarefa quase impossível. Resultado, em casa eu me refugiava nos antigos vinis de meu pai e escutei centenas de vezes maravilhas como a “Abertura 1812” de Tchaikovsky ou a “Tocata e Fuga em D Menor” de Bach. Fora isso, minha convicção seguia firme e eu sempre dizia que ora bolas, “eu não gosto de música”.
Pois bem, numa bela noite qualquer pelos fins de 1978, meus pais me chamaram para ir a um cinema para assistir a estreia de um filme que, segundo eles, prometia ser muito bom. Era sábado. Disseram-me também que apesar de eu ter somente dezessete anos (o filme era a partir de dezoito), junto com eles conseguiríamos entrar, sem problemas. Senti-me importante. Assim, fomos nós três de carro para o cinema. Perguntei ao meu pai por que estávamos indo de carro e ele me respondeu que o cinema era um drive-in e só se ia a cinema drive-in de carro. Heim? Não me estenderei aqui, mas eu estava indo a um cinema drive-in com meus pais. É um filme ópera, meu filho, você vai gostar, disse-me meu pai. Heim? Eu estava indo a um cinema drive-in com meus pais ver uma ópera reproduzida em filme num sábado à noite? Respirei e respirei, mas minha mente apenas conseguia reproduzir insistentemente os tiros de canhão que estão na “Abertura 1812”. Chegamos ao drive-in.
Compramos a pipoca e posicionamos o carro próximo do telão. Meus pais ficaram nos bancos da frente e eu no meio do banco de trás. Por óbvio, senti-me uma vela. Depois de umas papagaiadas na forma de trailers de filmecos brasileiros, a tela ficou escura e logo começou a tal ópera. Tratava-se do “Tommy”, da banda inglesa The Who. A ópera, na verdade uma Ópera Rock, logo de cara apresentava um som que eu nunca havia escutado, até então. Era a sua “Abertura”, fortemente musicada que lançava logo na primeira estrofe o seguinte:
“Captain Walker didn’t come home
His unborn child will never know him
Believe him missing with a number of men
Don’t expect to see him again…”
Para mim, foi impactante. Era a minha iniciação ao rock. Fiquei mudo e extasiado. Acompanhei tudo com máxima atenção e até tentava decorar as legendas em português da Ópera. Não conhecia ninguém do filme, mas lá estavam, além dos Who, Townshend, Daltrey, Moon e Entwistle, renomados atores como o grande Oliver Reed, a lindíssima Ann-Margret e o alucinado Jack Nicholson. E isso sem falar de músicos do quilate de Eric Clapton, Tina Turney e Elton John. A trama contava a história de Tommy Walker, um garoto que nasce exatamente enquanto o pai, piloto da RAF, morre na 2ª Grande Guerra. Depois, o menino Tommy, em consequência de um trauma de infância, torna-se cego, surdo e mudo. Na sequência do filme, Tommy vira um Pinball Wizard, derrotanto numa batalha memorável o Campeão do Pinball, representado impagavelmente por Elton John. Durante a batalha, que é uma das principais cenas da Ópera, Elton John toca o clássico “Pinball Wizard”. A trama segue, intensa, Tommy se transforma numa espécie de guru e até ao final da Ópera a música segue vigorosa, sem perder a força, a agilidade e o refino musical que a caracterizam.
Quando o filme acabou, meu pai ligou o carro e saímos do drive-in. Ele então disse que havia gostado do filme, apesar dele ser um pouco estranho, meio doido. Minha mãe concordou, disse que havia gostado bastante, apesar da música ser bem diferente do que ela esperava. Perguntaram se eu havia gostado. Respondi: muito, muito mesmo. Na verdade, eu me sentia realizado e feliz. Finalmente tinha identificado o meu tipo de música. Rock´n Roll. Nunca mais falei o tal eu não gosto de música.
Fiquei tão contente com o que vi e ouvi que na segunda-feira seguinte decidi procurar nas lojas o Tommy. Assim, percorri a pé toda a Avenida Conselheiro Aguiar, no bairro de Boa Viagem, onde eu morava. Fui em absolutamente todas as lojas que vendiam discos. Para minha frustação, ninguém conhecia o The Who, não tinham seus discos e muito menos sabiam da existência do filme Tommy. Estava meio desolado quando finalmente entrei numa lojinha e fiquei olhando os discos. Mexia aleatoriamente quando achei um Compact Disk de vinil do Elton John. Fiquei alucinado, pois uma das canções do lado B era justamente a Pinball Wizard. Comprei o disco e voltei correndo. Em casa, devo tê-la escutado umas vinte vezes.
Enfim, este Compact foi o meu primeiro disco de Rock. Comprei-o quanto tinha dezessete anos, lá em Boa Viagem, Recife. Há pouco eu o encontrei aqui em casa, por causa de minha mudança. É isso, ele ainda está comigo. Meu primeiro disco de Rock.
ps.: hoje não falo mais “não gosto de música”. Porém, quando me perguntam sobre ‘aquelas’ músicas digo apenas, isto não é música.