por Carlos Raposo
O Décimo Caminho chama-se Inteligência Resplandecente,
porque é exaltado sobre todas as cabeças e tem por assento o trono de Binah.
Ele ilumina os esplendores de todas as luzes,
fazendo emanar a influência do Príncipe dos Rostos, o Anjo de Kether.
(texto Yetzirático para a Esfera do Reino, Malkuth)
epois de algumas horas de conversa, onde vários temas aleatórios e desconexos tinham sido abordados, finalmente aquele senhor que tanto fazia para se parecer um pouco enigmático, abriu-me as portas da Ordem. Segundo suas próprias palavras, aquela era a verdadeira escola de iniciação, de acordo com a sagrada tradição da Grande Fraternidade Branca no Ocidente.
Hoje não me recordo bem se eu fingi acreditar nisso ou se realmente aceitei como verdade essa idéia. De qualquer forma, confesso que nessa época, igualmente a qualquer ocultista que até então eu conhecia, o sonho de participar de ordens mágicas onde augustas e pomposas iniciações fossem realizadas era parte forte de meus anseios. Isso me leva a crer que, provavelmente, eu tenha posto de lado meu senso crítico e tenha embarcado na história daquele simpático senhor. Mesmo assim, posso afirmar que meu espanto em encontrar alguém cujo comportamento lembrava alguns personagens apenas conhecidos de contos e lendas, era bem grande.
Nesses dias, a Ciência Oculta era, pensava, além de algo bem conhecido por mim, um fascínio que provocava minha imaginação, conduzindo-me às mais rocambolescas elucubrações de ordem místicas ou esotéricas. Relativamente versado nesses temas havia tantos anos, já estava acostumado a me considerar um dos muitos humanos que, devido tão somente a minha ação em certas esferas ocultas, levava uma espécie de vida dupla, onde o iniciado e o profano que moravam em meu ser eram os únicos entes que compartilhavam de certos segredos ocultos. Desta forma, ora eu estava envolvido com os malditos afazeres normais de um profissional de informática, ora perambulava entre os manuais das sinistras doutrinas ancestrais, aventurando-me em práticas que variavam entre complexos códigos de programação e outros códigos, nem tão complexos, é verdade, mas que prometiam o contato com as sutis esferas do espírito. Assim eu ia oscilando, ora entre prontuários de Cobol, ora entre grimórios de Enochiano; às vezes programando em C++ e em outras ocasiões tecendo conjuros de Goetia.
Todavia, mesmo me sentindo uma espécie de super-herói, onde minha verdadeira personalidade de iniciado estava caprichosamente velada por minha existência normal, sendo aquela totalmente oculta aos profanos que me conheciam, em meu íntimo o desamparo de não fazer parte de alguma “ordem” verdadeiramente iniciática causava uma incômoda pena de marginalidade oculta. Até pior, provocava um desagradável sentimento de me achar como se fosse uma espécie de desfavorecido órfão místico.
Esse sentimento de abandono espiritual é próprio da busca em si. Quando o buscador se vê perdido nas insensatas e infantis lembranças que ele mesmo não sabe definir, mas que parecem possuir um forte apelo interior provocado pela saudade de algo desconhecido por sua mente ordinária, ele mergulha numa existência aparentemente vazia, que atormenta a alma e confunde o intelecto. Se esse algo é real ou não, às vezes ele nunca o saberá. Por tal, é provável, ele se afogará em superstições e nas infinitas suposições do espírito, no propósito único de preencher esse vazio; e mesmo quando o conhecimento mundano lhe é amplamente favorável – e aqui é impossível deixar de recordar o drama do Fausto, de Goethe -, o buscador se vê atordoado por sua existência, cego pela ignorância e frágil como uma criança desamparada.
As práticas mágicas ou se entregar à demanda de tribos, clãs, fraternidades ou ordens que dêem a sensação de conforto, colo e abrigo são duas das conseqüências diretas desse sentimento. Assim ocorreu comigo.
E mesmo considerando minha rápida passagem – quatros anos recebendo monografias pelos correios – em uma bem conhecida organização tida como Rosacruz, isso por si só não fora suficiente para amenizar esse sentimento de desamparo. Para mim, isso era a inequívoca percepção de ainda não ter encontrado o filão do conhecimento oculto. Com o tempo, essa organização apenas se converteria em mais um ludíbrio que o caminho nos obriga a conhecer. Quem sabe – pensava esperançoso – isso não seja alguma espécie de teste providenciado pelos mestres no intuito de me apontarem o caminho correto. Tentativa e erro? Que assim seja! Logo me pus fora da referida ordem, coisa que até hoje não me arrependo nem um pouco.
E como a tradição não se apresentava, ia me contentando com esse pouco, em conhecer, entrar e sair de algumas organizações que prometiam um conhecimento sagrado. Isso evitava que eu cometesse o mesmo “erro” de meu Irmão Perdurabo que, como indicado em seu nome mágico, teimou em persistir até o fim dentro da primeira ordem que o recebera. Tudo para constatar que ao final nada havia para ser perdurado.
Verdade é, vale dizer, que nessa altura a minha paciência iniciática já estava por um fio, quase totalmente acabada. Pensei em me afastar de vez desses estudos, até que, enfim, encontrei essa outra opção. De fato, e não há pesar em reconhecer isso, a proposta daquele senhor me pareceu excelente. Veio-me num momento certo e crucial para o ocultista que eu era (ou que me considerava ser). Então o que obtive naquele momento foi nada mais nada menos do que aquilo que eu realmente queria e já começava a considerar quase impossível de se alcançar: fazer parte de uma linha direta de iniciação. Foi o que eu consegui ou, pelo menos, o que eu pensei ter logrado naquela época. Entretanto, antes que quaisquer peculiaridades do novo sistema de magia e da tradição fossem por mim assimilados, admito, o reconhecimento de ser considerado, finalmente, algum tipo de ocultista “oficial”, mais que reconfortante era estimulante, já fazendo a coisa toda ter valido a pena.
Tão logo aceito como Probacionista, iniciei com afinco nas práticas e tarefas devidas a esse estágio de aprendizado.
Correto: nada parece ser muito exigido de aprendizes em início de carreira. Contudo, – pensava – já tenho anos e mais anos de bagagem místico-mágica, portanto – concluía – não me deterei apenas em uma reles conduta básica, pois já sei o bastante para me orientar por mim mesmo. Enfim, como viria a compreender bem mais tarde, meus anseios e meu comportamento estavam em absoluta normalidade, exatamente conforme aquilo esperado dos principiantes no estudo das artes ocultas.
Repetindo, o que mais me fascinava naquele instante era o fato de poder finalmente dizer: “sim, eu faço parte de uma Ordem verdadeira”. Concomitantemente, – embora eu não entendesse o porquê disso – a curiosa definição dada pelo genial Umberto Eco, para classificar o comportamento daqueles que se envolvem com ocultismo, passava pela minha mente, fazendo-me sentir o próprio “diabólico”. Porém, eu tinha coisas mais importantes para tratar, é claro. Deixei de lado o Eco o seu Pêndulo e parti para as coisas mais importantes…
O extenso currículo recomendado para os iniciantes estava muito além de parecer fácil, pois consistia de dezenas de textos e livros, propiciando aos novos estudantes um contato com as principais formas de doutrinas místicas e religiosas espalhadas pelo mundo. Considerei esse ponto, o volume da instrução inicial, algo muito favorável à Ordem, concluindo que sua seriedade era logo colocada em evidência: apenas os persistentes continuarão. Pela primeira vez pude entender o porquê do mote de nosso Irmão Perdurabo.
Meu plano inicial de não me deter apenas na conduta básica do Probacionista ficara inviabilizado pelo excesso de informação a ser assimilada naquele estágio. Resignado por falta de tempo hábil e sempre culpando minhas atividades profanas pela interferência em meus santos estudos, limitei-me ao currículo da Ordem. Persisti, apesar do excesso de informação.
Vale dizer que aquilo que na época considerei um “excesso” inútil e enfadonho, hoje entendo não só como válido, mas também como essencial. Sem essa bagagem, o ocultista correria o risco de estar nivelado a um desses muitos magos ocasionais, dos quais a superficialidade de nossa sociedade é ávida por produzir.
Assim, meu grande aprendizado tinha finalmente começado.
Sempre recordando as origens de minha recém adquirida linhagem mágica, subitamente percebi que aquele desconfortável sentimento de me considerar um órfão espiritual tinha desaparecido! “Apenas uma conseqüência de um pueril consolo psicológico”, dizia meu senso crítico; “Bobagem! Agora você está de fato fazendo parte de uma clara linha de sucessão iniciática e espiritual! Hoje em dia, mesmo sendo um aprendiz, você é um iniciado!”, apelava meu lado místico, num desigual jogo de forças, afogando a voz do nada vaidoso anjo mau da autocrítica. Mais do que nunca, senti-me um perfeito super-herói, com sindicato e tudo, inflado em uma cômoda importância, alimentando uma auto-imagem que aos poucos tomava conta de meu próprio ser.
Tomei conhecimento da literatura e certos ideais de Nietzsche, sobremodo sua atitude anticristã e seu modelo de super-homem. É claro que para tal filosofia, e isso é mais que certo, eu não estava preparado, em hipótese alguma. Ela, porém, dá a mente em formação uma poderosa ilusão de autossuficiência simplista, fazendo-a crer nas mais absurdas sandices. Infelizmente, esse e outros tantos filósofos e pensadores, nas mãos de imaturos jovens, ficam reduzidos a uma coletânea de jargões, cujo único propósito é “medir forças” ou avacalhar com os argumentos dos mais velhos. São mudados em meros dardos a serem lançadas do modo mais irresponsável possível, quando de uma conversa ou discussão, apenas para causar efeito. Contudo, logo a gente aprende que há fins mais nobres para a boa filosofia.
Curiosamente, de mãos dadas à enérgica idéia filosófica do super-homem de Nietzsche, a imagem do superman, naquele momento, ocorria em minha mente. Todavia, bem antes de lembrar os poderes do famoso personagem dos comics, essa imagem apenas me apontava à pueril diferença entre o herói e o jornalista boboca: os óculos! Embora eu ainda não estivesse dando importância para aquilo que era dito pela impiedosa voz de minha consciência, foi inevitável fazer a comparação entre os óculos do homem de aço e o ridículo véu assumido por aqueles que pensam poderem estar escondidos sob o bobo rótulo “iniciado”, impedindo seu reconhecimento por parte da plebe profana.
Pois é. E da mesma forma que só o elenco do superman não “sabe” que por detrás dos óculos do jornalista boboca está o invulnerável super-herói, apenas aqueles poucos que se encontram envolvidos pelas mesmas ilusões compartilhadas pelo “iniciado”, o reconhecem como tal. Porém, nada disso importava naquele momento.
Enquanto eu progredia em meus estudos, de vez em quando acompanhado por algumas dicas daquele senhor, agora era solenemente tratado como instrutor, o sentimento de importância do tipo “sou alguém nesse mundo”, falava cada vez mais forte em mim, a ponto de meu comportamento mudar. Vi minhas palavras adquirirem um tom mais severo e grave, e meu olhar, sempre buscando informações ocultas em tudo que via e em todos que encontrava, era inclusive temido pelos olhos “profanos”. E eu me sentindo muito bem com isso, é claro.
Aos poucos conheci outros tantos que tinham enveredado pelo mesmo caminho. Isso deveria não ser possível na Ordem, pois era dito em uma de suas primeiras instruções que nela nós só conheceríamos o nosso Instrutor e aqueles que porventura ingressassem na Ordem por nosso intermédio. Mesmo assim, a quantidade de gente que se apresentava como membro da mesma Ordem era grande, um número quase assustador para algo tido como secreto. Além disso, uma curiosa característica parecia estar presente em todas essas pessoas: ninguém reconhecia ninguém como iniciado! Isso realmente me espantou no início. Cheguei a pensar que essa atitude poderia ser algum tipo de jogo ou brincadeira que se fazia com os novatos, para confundi-los ou aprontá-los para outras instruções, agora sábias; ou mesmo que fosse uma espécie de pilhéria rosacruz, parodiando e contradizendo o dogma que diz “os rosacruzes se reconhecem mutuamente”, para dizer que “os iniciados de nossa Ordem se estranham mutuamente”, ou sei lá mais o que.
Todavia a verdade era, como qualquer outra verdade, bem simples: cada um dos membros dessa “minha” Ordem, dando asas e vida a um obscuro desejo oculto de soberania e poder, julgava-se no direito de tê-la só para si próprio, não admitindo que qualquer “irmão” ousasse fazer de sua voz uma expressão da Ordem propriamente dita. Um comportamento tão estranho quanto peculiar, que eu não entendia. Mas o que eu viria a aprender com isso logo seria confirmado pelo tempo, quando certo aspecto da iniciação, que muitos não superam, ficaria claro para mim: o estigma do louco de Tiro.
Apesar dessas observações não muito empolgantes, eu continuava progredindo rapidamente em meus estudos. Por sua vez e como era de se esperar, nosso Astro Rei, o Sol, a revelia de meu progresso, seguia galgando signo após signo, até que, encerrado um ano de trajetória, novamente se encontrava no mesmo signo no qual eu tinha sido admitido, um ano atrás, ao estágio inicial de provação à Ordem. Na estrutura da Ordem, este era um sinal importante.
Fui então chamado por meu Instrutor. Mostrando-se satisfeito com a minha dedicação, fez um pequeno discurso que me pareceu significativamente proselitista, até que concluiu me dizendo que finalmente, após aquele longo período de estudo, eu seria admitido ao Primeiro Grau da jornada. Assim, repetindo suas palavras, “depois do primeiro ciclo de Abraxas”, eu estava pronto para o Primeiro estágio da Ordem.
Obviamente, por mais ilustrado que eu me considerasse naquela época, esta declaração “ciclo de Abraxas”, ativou-me a curiosidade. Nunca havia escutado tal referência. Ao longo de algumas semanas, vi e revi vários livros “ocultos”, conceitos, anotações minhas, etc. Para minha surpresa, não obtive nenhum esclarecimento a respeito deste mistério. Desisti de tentar compreender por mim mesmo o que significava o tal “ciclo de Abraxas” e decidi ir pelo caminho mais curto para seu entendimento, ou seja, perguntar diretamente a meu instrutor.
Muito interessado, afinal, o estudo de Abraxas era de vital importância para a compreensão dos ensinamentos sob a ótica gnóstica, quis saber o significado de tamanho mistério. Seria algum tipo de status dentro da Ordem? Estaríamos sendo supervisionado por Abraxas, ele mesmo? Seria esse Abraxas uma espécie de Deus Oculto e de extrema importância na Ordem? Algum ritual seria necessário para invocá-lo e, por fim, compreendê-lo? Palavras sagradas em grego arcaico deveriam ser memorizadas por mim, a fim de dar cabo de tão arcano ritual? Era o oculto Mote mágico de algum Irmão misterioso que estaria me acompanhando e, secretamente, supervisionando o meu desenvolvimento? Ou melhor, seria este enigma mais um ordálio, cujo propósito era testar meu conhecimento? Nesse caso o mistério deveria ser mantido até que eu o resolvesse! Isso realmente excitava meu cérebro cabalístico. As hipóteses fervilhavam em minha ávida mente de ocultista. Estava realmente empolgado com o mistério a ser desvelado…
Abraxas é uma divindade relacionada ao Sol. Conforme os bem conhecidos procedimentos padrões da Gematria, 365 é o seu valor numérico. De imediato, a referência nos lembra o número de dias do ano. Além disso, de acordo com uma versão do Sepher Sephitoth, 365 é o valor para a expressão “Terra de Tiphareth” em hebraico, novamente lembrando a relação dos elementos terra e fogo e dos “planetas” Terra e Sol (Tiphareth). Ora, em 365 dias a Terra completa uma volta ao redor do Sol. Assim, um ciclo de Abraxas era apenas um simples jargão para se dizer “um ano de estudos”. Nada mais.
Confesso que essa desinteressante explanação, dada de modo igualmente desinteressado por meu orientador na Ordem, pegou-me de surpresa. Só isso? Ela era simplesmente decepcionante, quase ridícula. Não havia a suposta supervisão de Abraxas e nem o tal deus oculto. Nenhum ritual invocando qualquer coisa e nem qualquer mísera palavra num idioma desconhecido para ser memorizada. Nenhum mistério a ser desvelado e nem mesmo ordálio a ser superado. Mas era só isso mesmo. Fazer o que? O pior mesmo foi concluir que decepcionante mesmo tinha sido o efeito de minha tola expectativa a respeito do tema, e não o tema em si. Deduzir que a natureza dos “mistérios” está, em sua grande parte, tão oculta quanto maior for a estéril elucubração de nossa mente a respeito deles, não foi tarefa difícil. Difícil foi aceitar essa conclusão.
Bem, é melhor deixar esse assunto de lado. Esqueçamos o Abraxas e o seu ciclo e voltemos a minha admissão ao Primeiro Grau da Ordem.
“Você chegou ao Reino, agora você é um Neófito de nossa Santa Ordem”. Esta foi a quase solene conclusão da avaliação de meu instrutor. A avaliação foi feita a partir da análise de meu Diário Mágico, onde havia o registro de meu ano de estudo e práticas ao longo de meu “ciclo de Abraxas”.
Umas das principais formas de avaliação dos postulantes que está ao alcance dos instrutores é o exame dos Diários Mágicos. Não é muito difícil entender o que vem a ser um Diário Mágico. Ele é exatamente o que diz sua definição conceitual, ou seja, um caderno onde são anotados as práticas, impressões e resultados, ou o que quer que seja considerado pertinente pelo estudante. Assim, bem aos poucos, toda a evolução do pensamento e da dedicação do aprendiz fica registrada, possibilitando ao Instrutor tomar conhecimento do avanço de seu candidato e, por fim, fazer a sua avaliação.
O mais relevante na prática de se construir um Diário Mágico, porém, é permitir ao próprio aprendiz, uma constante auto-avaliação. Provavelmente, ele será o principal registro físico de seu avanço na senda iniciática. Mantê-lo atualizado poderá ser de vital importância bem mais tarde para o Adepto que um dia o aprendiz almeja ser. Isto porque durante as futuras práticas da “memória mágica”, o então Adepto poderá finalmente perceber que todo o encadeamento de fatos de sua vida mágica já estava, há muito tempo, traçado por sua velada vontade, de uma forma clara e lógica. Os registros presentes no Diário é que atestarão este encadeamento. A conquista desta “memória” é um fundamental passo em direção a Cerimônia Maior, representada pela Visão e Conhecimento do Sagrado Anjo Guardião. Feito isso, ele estará a um instante da identificação de sua Vontade Verdadeira.
Mas, estava falando de minha admissão ao Grau de Neófito, a chegada ao “Reino”. Ok. Lá vem um código novamente! Outra expressão curiosa indica que o iniciado está no Grau de Neófito: é dito que ele chegou ao Reino. Mas que Reino seria esse?
Antes que qualquer imagem distorcida do real sentido dessa expressão pudesse ocupar minha mente, causando certa ansiedade e mal entendidos como no caso do tal frustante “ciclo de Abraxas”, procurei rapidamente entender o que isso me dizia. Tentei rechaçar aquelas terríveis conjecturas místicas, mas, mesmo assim, não consegui evitar que certas caricatas idéias arquetípicas do tipo “Reino do Bem e Luz” ou ainda “Reino do Mal e Trevas” – herança atávica cristã falando, é certo – passassem pelas janelas de minha mente. Todavia, agora eu estava um pouco mais cuidadoso.
Felizmente essa foi fácil de se entender. “Reino” nada mais é que o indicativo para o termo equivalente em hebraico, Malkuth, a primeira esfera da Árvore da Vida, sua primeira Sephira.
Desde o século XVIII muitas ordens têm se utilizado do arranjo cabalístico da Árvore da Vida como representação básica e estrutura na qual todo um sistema de evolução iniciática à ordem em si é montado. Nossa Santa Ordem, que se gabava por sua originalidade, pelo menos nesse ponto não escaparia do manjado padrão ortodoxo de estruturalização de ordens iniciáticas. Enfim, para o entendimento do Grau de Neófito, o iniciado deve estar ciente do maior número possível de símbolos associados a Malkuth, ou a Esfera que representa esta parte do aprendizado, o Primeiro Grau.
Pois é: o Primeiro Grau! Só então entendi que antes, como Probacionista, eu não fazia parte de Ordem alguma. Estava do lado de fora, à porta da Ordem, em uma espécie de aprendizado vigiado. Em teste, como o próprio nome “provação” indica. Eu era apenas um apêndice, e não sabia…
Bem, pelo menos agora, afinal, eu estava certo que, sendo um Neófito, eu pertencia de fato a Ordem. Tudo bem então. Apenas uma irritante e cínica voz interior me incomodava, zombando das minhas arrogantes presunções e certezas, quando de meu estágio de provação, onde eu achava que era alguém apenas por “pertencer” a uma Ordem secreta. Pareceu-me que o verdadeiro aprendizado tinha de fato começado com essa lição, não pelo estudo propriamente dito, ao qual tanto me dedicara, e sim pelo maçante sussurro debochado da livre voz de minha consciência a respeito de mim mesmo.
Aos poucos tudo foi mudando.
Expandir a Ordem é umas das tarefas que o Neófito assume. Entretanto, essa tarefa não é imposta como uma condição essencial, nem exposta com a devida clareza. Antes, ela está implícita em uma outra prática, a de assumir novos Probacionistas. Inicialmente, isso parece enfadonho. Depois, o passar do tempo torna o gosto de se ter estudantes sob tutela por demais agradável para ser ignorado. Tão logo o Neófito comece a aceitar novos Probacionistas, seu sentimento de importância, então um pouco massacrado por certos atropelos e pelo desvelar de aspectos sombrios da sua natureza, é renovado pela impressão do mestre que ele agora pensa ser. Não é raro encontrarmos Neófitos que, esquecendo que ainda estão no Grau inicial da Ordem, posam de grandes mestres.
A conclusão na qual chegam os que passam por esse processo diz que todos precisam sentir isso, afinal as lições impostas pelos ludíbrios e erros parecem sempre mais fortes que aquelas oriundas das dádivas. Elas marcam definitivamente o caráter do Mago que está por nascer como algo que deverá ser lembrado durante os tempos que mais tarde virão. E se é certo que existe a necessidade de aprendizado pelo erro, antes um erro durante a infância, onde nossas responsabilidades são poucas, que errar quando adulto, quando as conseqüências certamente serão maiores. Se um Neófito erra, ele certamente sofrerá com isso, e talvez alguns estudantes também; mas as conseqüências de um Erro de um Magus, quando toda uma Era o tem como arauto, não podem ser medidas. E se um Neófito está em Malkuth, apenas um Reino sofrerá dano; todavia, um Mago, cuja residência é Hokhmah, pode fazer com que um inteiro Universo seja afetado.
Aos poucos o Neófito aprende que a relação dele com os Probacionistas é muito mais que somente orientar. Lembrando mais uma forma simbiótica de convívio, os aprendizes, enquanto são orientados pelo Neófito, o ensinam e o fazem entender as questões de sua própria consciência. Na verdade, para ele, estar como orientador de Probacionistas é uma das formas mais intensas de aprendizado que o Caminho em si proporciona. Ao mesmo tempo sutil e drástica, esta forma de aprendizado é essencial para o Neófito. Ela é sutil, pois é quase um processo imperceptível de acúmulo de experiências e exposição de vaidades, onde sua verdadeira natureza vai sendo desvelada para que aos poucos exceda os limites impostos por sua presente consciência. Mas ela é também drástica, pois da mesma forma como o nível das águas de uma represa, apenas quando elas transbordam é que se conhece a força daquilo que estava oculto. Concomitantemente, somente quando o Neófito sente que os limites de seu saber, ou de sua consciência, estão saturados, passando a se tornar a própria causa que impede o seu avanço, é que ele terá a chance de escapar dos grilhões que o seguram. Normalmente isso ocorre de modo drástico, lembrando o estouro de uma enorme barreira, quando toda água represada avança destruindo o que encontra pela frente.
Talvez por isso não seja raro encontrarmos Neófitos em profundos tormentos, beirando a colapsos e a insanidade. Diz-se que eles devem passar por este ordálio. Para cada Probacionista que é aceito, percebe-se a atitude da Providência em fornecer ao Instrutor o instrumento, através do qual, certas pequenas verdades necessariamente virão à luz.
Embora seja evidente a impossibilidade de se prever com segurança para onde rumará o Neófito, duas conseqüências básicas podem aparecer como padrão após a crise devida a esse estágio de aprendizado. A primeira hipótese resulta em sua total prisão. Afinal, avareza e inércia são os vícios atribuídos ao Reino. Quando o pressuposto autoconhecimento apenas forneceu meios para a edificação de uma rígida estrutura de ego, tornando impossível ao Neófito romper as naturais barreiras de sua consciência para a obtenção do verdadeiro logro do aprendiz que ele ainda é, diz-se que ele falhou. Aqui, preso na egocêntrica armadilha do Reino (Malkuth), o aprendiz passa a se considerar não só um verdadeiro mestre, como também se julga o único capacitado a tal.
Muitos enveredem por esse cruel e negro labirinto. Nesses casos, o já citado estigma do Louco de Tiro faz-se valer. Tiro era um famoso porto da antiga Fenícia, célebre por ser a principal via de comércio da época. Conta-nos sua lenda que ali viveu um louco que passava o tempo todo gritando com os muitos navios que lá atracavam. Segundo o louco, todos os navios que entravam e saiam do porto de Tiro eram seus e de ninguém mais. Eles ali só estavam por expressa ordem sua, entrando e saindo porque esta era a sua vontade. É claro que ninguém dava atenção ao infeliz louco que despendeu toda sua vida dando ordens a seus imaginários pertences. O louco assim viveu, sem nada possuir, julgando-se dono de tudo. Sem nunca ter sido ouvido, morreu esquecido e o porto, como se o louco nunca tivesse existido, continuou ali, com seus milhares de barcos, entrando e saindo conforme a vontade de seus verdadeiros donos.
No caminho iniciático não é difícil encontrar os que se comportam da mesma forma, considerando-se únicos e soberanos, rechaçando todos os demais que ousem estar na mesma via. Porém, como no exemplo do Louco de Tiro, eles falam sozinhos, nada representam e, por fim, são esquecidos completamente. A Ordem, entretanto, continua, da mesma forma que os barcos continuaram aportando em Tiro, independente da loucura de alguns de seus temporários membros.
A segunda conseqüência mostra, em princípio, um Aprendiz em crise, a ponto de se retirar da Senda. Aos poucos, entretanto, ele começa a perceber que a aparente perda de parâmetros e certezas apenas é uma indução direta do enorme aumento das perspectivas que outrora eram consideradas como sendo sua final realidade. A visão de si é agora, mesmo sem a ansiada compreensão, mais vasta; seu horizonte, ainda sem entendê-lo por completo, é mais amplo; o próprio universo assume aspectos totalmente desconhecidos a ele. Concluindo que sua jornada tem ali um recomeço, ele readquiri forças e continua seu passo, com um maior nível de consciência. Saber descriminar é a virtude primeira do Reino e um passo em direção ao nível subsequente, o Fundamento (Yesod). O Neófito que superou as provações de seu grau conseguiu, finalmente, tomar consciência da existência de todos os elementos pertencentes a Esfera do Reino. Todos os elementos, por sua vez, – terra, água, ar e fogo -, são postos em evidência, visando o perfeito equilíbrio que apenas se dará quando do Adeptado, na Esfera do Sol. Todavia em Malkuth, a Esfera do Reino, esses elementos são os mistérios a serem entendidos, compondo a Esfinge e seu enigma, a mesma Esfinge devoradora dos homens que não a decifram. Não é por outro motivo que a Esfinge é uma das tradicionais figuras associadas a essa Esfera da Senda.
A sabedoria dos Antigos vem pacientemente nos lembrar a existência de mil religiões para cada milhar de monges. De todo modo, é dito pelos Mestres da Senda que logo no início do caminho o aprendiz demonstra suas reais inclinações. Assim, acredita-se que não é difícil para um orientador devidamente qualificado prever o futuro que seu instruído terá. Nesse sentido, duas perspectivas ganham destaque: o aprendiz será ou um Escravo do Abismo ou um Mestre de Templo, Geralmente essas duas perspectivas apresentadas são a regra, mas, é claro, não compreendem a totalidade dos casos. Resta somente esperar que cada um cumpra os desígnios de sua própria vontade.
Porém, quando fui recebido na Santa Ordem, não era de se esperar que esses conceitos existissem em minha mente. Pelo contrário, eu não fazia a mínima ideia do que iria acontecer. Apenas algo parecido com uma euforia controlada, uma excitação pueril, ocupava meu pensamento. A Ordem, contudo, necessita crescer e os Neófitos, conscientes ou não disso, agem de acordo com este querer.
Enfim, não contrariando a necessidade de crescimento da Ordem, tão logo assumi o Grau de Neófito, prontamente alguns Probacionistas ficaram sob a minha tutela. Confesso que a experiência é ótima. No entanto, hoje sei que ela só é ótima porque nos mostra, de modo inapelável, aquilo que nós mesmos somos.
Minha avaliação dessa fase de aprendizado, aparentemente, excluía grande parte dos Probacionistas que, uma vez tendo sido admitidos ao Grau de Provação, nada mais fizeram para o próprio desenvolvimento dentro do Sistema de nossa Ordem que assinar um Juramento e receber as instruções preliminares. Isso por si só nada significa. Mas não chega a ser um fato surpreendente a grande quantidade de Probacionistas que simplesmente abandona a jornada logo no seu início. Apenas bem mais tarde, pude identificar mesmo em cada um desses, uma sábia lição da Providência, que na época eu não fora capaz de perceber.
Porém, seguindo com aqueles Probacionistas que se mantinham firmes no estudo e nas práticas pertinentes, mais uma vez fui avançando em meu novo status dentro da Ordem. Por esta hora eu já estava um pouco mais alerta contra o enlevo provocado pelas conquistas dos assuntos místicos. Contudo, eu deveria saber que para cada degrau conquistado, outro certamente estaria por vir; e a cada dádiva oriunda do avanço na senda, uma provação a mais também chegaria. Esta seria uma outra lição a ser aprendida.
Contrariando os princípios básicos da Ordem, comecei a fazer reuniões, nas quais um reduzido número de aprendizes participava. Basicamente, detive-me em lhes demonstrar a doutrina mística de nossa organização, apresentando, passo a passo, as instruções a serem estudadas. “Ah! Método! Se no meu tempo isso tivesse ocorrido! Muitos erros seriam evitados” – foi o inevitável pensamento que me ocorreria após algumas reuniões. Logo, esta forma de pensar me daria uma nova e incrível idéia: já que tenho inteira responsabilidade pelas reuniões, por que não formalizá-las em uma estrutura? Na verdade, o que logo passou a ser meu intuito secreto era montar a minha própria Ordem. A idéia era muito sedutora e começava a deixar o meu cérebro em ebulição!
“Como nunca ninguém pensou nisso?”, perguntava-me, acreditando em minha notável originalidade. É certo que alguns, no passado, a partir de certos documentos criptografados, encontrados de forma misteriosa, às vezes suspeita e outras tantas forjadas, criaram Ordens e tudo mais. Hoje, porém, a coisa é diferente!
Imediatamente, várias hipóteses de nomes para a minha Ordem brotaram de minha fértil imaginação. Aquelas hipóteses que possuíssem o nome “rosacruz”, seriam de imediato rechaçadas, pois “já existem muitas ordens assim”. “Ordem do Templo alguma coisa”, era uma hipótese boa, mas também muito vulgar, mesmo assim talvez eu ficasse com essa. De qualquer forma, a minha Ordem seria original. Incontáveis nomes mágicos pareciam fazer de meu pensamento um parque de diversões; a confusão era total e mil as possibilidades.
Sim, claro: um título especial deveria ser criado para aquele que seria o chefe dessa nova ordem. O título “Mago Supremo” era forte candidato. Não, melhor seria latinizá-lo, pois Magvs Svpremvs daria um élan todo especial à coisa, apesar da minha desconfiança quanto a correta grafia do título latino.
Se por um lado meu cérebro fervilhava com devaneios bem típicos de um “diabólico”, por outro, meu senso crítico ficava cada vez mais sufocado. Felizmente, a Providência correu em meu auxílio.
Eu costumava perambular pelo Centro do Rio de Janeiro, na hora do almoço, em infindáveis caminhadas meditativas, com algumas pausas, onde costumava me exercitar na prática de vasculhar os Sebos, lojas que vendem livros usados. Em uma dessas livrarias aconteceu algo bastante inusitado. No Sebo, lá estava eu, debruçado sobre as prateleiras repletas de uma poeira acumulada Deus sabe lá há quanto tempo, além de cheias de teias já há muito abandonadas por suas arquitetas. Como de costume, estava em procura de algo novo, esperando que as graças dos céus me brindassem com qualquer coisa rara e secreta (pergaminhos, quem sabe, ou cartas criptografadas, escondidas entre as páginas de algum livro velho, muito velho!!). Entretanto, no lugar do meu precioso achado, escutei um avassalador “como vai amigo? Já faz um bom tempo que nós não nos falamos!”.
Parei de remexer os livros, afinal eu podia estar sendo espionado pelo intruso, e olhei meio desconfiado – nenhum iniciado gosta de ser reconhecido – para aquela pessoa que falava. Não o reconheci de imediato, pois ele estava com aquele tipo de gorro de inverno (apesar do escaldante verão de 40ºC do Centro do Rio de Janeiro) que cobre toda a cabeça, deixando apenas parte da face à mostra. Porém, logo me lembrei daquela já referida ordem rosacruz. Sim, eu o conhecia de lá. Meio sem jeito, respondi ao seu cumprimento. Ele tinha sido um bom amigo, mas isso já fazia um longo tempo.
Seguiu-se, de imediato, aquela avalanche ansiosa de palavras. Uma pretensiosa conversa cheia de embromação, daqueles papos bem comuns que acontecem em livrarias de material esotérico. Cada um falou um pouco de si, com as devidas reticências que sempre devem estar presentes na fala de pessoas importantes como nós. Passada a avalanche inicial, logo um incômodo vazio se fez. Um silêncio misterioso. Quando isso acontece, é porque algo sério, muito sério, grave, está para ser dito.
Antes que eu pudesse tossir, o meu amigo limpou a garganta com um pigarro típico de quem vai se pronunciar a uma platéia e disse: “Amigo, gostaria de lhe dizer algo!”. “Pois não, sinta-se a vontade”, foi minha polida resposta. “Estou em contato direto com os Secretos Mestres do Espírito!”, ele me disse em tom solene, olhando para os lados, mantendo a devida discrição que a importância de um momento como aquele requeria. Então ele seguiu, dizendo que recebera uma nobre missão, pois os mestres – liderados pelo próprio Jesus Cristo – precisavam, e isso era urgente, apresentar à humanidade seus conhecimentos secretos, coisa que seria de vital importância não só àqueles que estivessem juntos com ele em sua empreitada santa, mas também para todo o planeta. Na verdade a existência de nossa Terra, quiçá de todo o universo, estava em jogo e o tempo para se realizar aquele trabalho era pouco. Ele, portanto – obviamente o sujeito me confessou que a idéia não lhe agradava, mas que isso era necessário -, estava montando uma ordem, onde os supremos mistérios da iniciação seriam apresentados.
Ok. Enquanto eu o observava, deixando de prestar atenção as suas palavras, fiquei realmente espantado. Meu amigo, percebendo meu assombro, tentou me tranqüilizar dizendo que estava preparado para isso e que não precisava me preocupar. Ele de fato percebeu meu susto, mas o interpretou de modo errado, pois eu não estava assustado com aquelas palavras em si. Porém, e isso me deixou pasmo, o que me assustava era perceber claramente a loucura estampada em seus olhos, em sua face e em seu comportamento como um todo. Como é que alguém poderia se iludir daquele modo? O pior, entretanto, era a forma dele se mostrar, como se estivesse sendo conduzido por uma energia extremamente daninha, que corrompia sua personalidade a ponto de permitir que sinistros sentimentos de inferioridade e recalques ficassem claramente a mostra. Enquanto ele continuava a falar compulsivamente, entre um espasmo nervoso e outro, sobre suas conquistas espirituais, não pude deixar de perceber mais uma vez a loucura estampada em sua contraída face.
Em seguida, meu amigo tentou me convencer a acompanhá-lo em sua demanda. Eu até poderia, devido ao que dizia as cores que ele identificava em minha aura, e – claro – caso os Mestres Secretos permitissem essa sublime graça, ser o segundo da escala hierárquica…
Pensei em sacudi-lo, alertá-lo ou mesmo tentar, logicamente, fazer com que entendesse que a coisa não devia ser assim tão grave. Afinal ele era meu amigo, ou tinha sido há tempos atrás. Só que, sinceramente, temi as conseqüências que essa minha tentativa pudesse gerar. Ou seja, resolvi mudar a abordagem e, através de uma escandalosa e patética mentira, tentei por um fim estratégico para aquele também patético vaticínio.
“Espere!”, disse eu em tom grave, “entendo perfeitamente a sua posição, e dela compartilho. Porém, meu Irmão, meu Frater, meu Brother, nós sabemos que nossos caminhos são distintos. Os Mestres já tinham me avisado da sua missão, a qual eu respeito, admiro e invejo. Eles, porém, o escolheram, e não a mim, pelas razões óbvias, que você deve saber quais são. No meu caso, eu ainda tenho muito por aprender e não estou a sua altura, pois não sou um mestre. Mas haverá um dia que nós nos encontraremos novamente, para o bem de toda a humanidade. Resta-me, por agora, ser resignado e esperar que esse dia ocorra em breve!”. Foi a coisa mais absurda que eu já dissera em toda a minha vida. Sendo sincero, quase me provocou uma crise de gargalhadas. Mas é que, naquele momento, nada mais me ocorrera para enfrentar aquela estúpida situação: eu estava sendo escolhido por um lunático, e por seus Mestres, para salvar o mundo…
Meu amigo, coitado, acreditou em minhas palavras, agradeceu a atenção, deu-me um abraço comovido e se despediu, não sem antes elogiar minha humildade, resignação e minha sábia atitude de aprendiz; além, é claro, de me abençoar em nome dos Mestres Secretos. Ainda esperei que ele dissesse “que a Força esteja com você”, mas o amigo apenas foi embora, resoluto, sério, inflado em importância, dizendo que havia pouco tempo e muito trabalho a ser feito.
E lá se ia aquele Dom Quixote dos dias de hoje, peito estufado por uma convicção vaticina, atacando seus moinhos da maldade, imaginários como seus Mestres. Quanto a mim, perdi a vontade de rir e fiquei realmente arrasado. E não só pelo fato de encontrar um amigo naquelas condições, mas, principalmente, por identificar várias facetas de minhas atitudes na loucura que ele apresentava. Isso era realmente uma chatice desconcertante.
Eu estava certo em pensar que em meio a toda aquela poeira da antiga livraria iria encontrar algum ensinamento velado. Ele, entretanto, veio a mim pela atitude de um antigo amigo de estrada, através de sua doidice. Desse modo, meus planos de montar uma Ordem foram simplesmente destruídos pela desagradável experiência proporcionada pelo encontro daquele início de tarde. Não mais haveria a “Ordem do Templo alguma coisa”, muito menos o Magvs Svpremvs. Na verdade, como é que eu pude pensar numa coisa dessas? Perguntava-me irritado. Desfiz o meu grupo de estudos, fazendo-me valer do jactante clichê: “está fase de aprendizado acabou”. Mesmo assim, ainda mantive o contato com todos eles, via correspondência.
E lá estava eu novamente, desiludido e tristonho, meio calado e pensando se todo o esforço para aprender a ciência arcana não passava de um mero e inútil jogo de vaidades.
Resolvi expor minhas dúvidas a meu instrutor, que pareceu se divertir bastante as minhas custas. Ao final, ele disse o que eu precisava ouvir.
Meditei muito sobre o que aconteceu, sobre meus intuitos e propósitos. Concluí que se algo estava errado, isso não era devido ao sistema em si, nem a culpa era de minha vida profana, muito menos de meu amigo maluco que queria montar uma ordem com o patrocínio de Jesus Cristo, e nem pelos atropelos aos quais eu tinha sido vítima. Parece que o caminho iniciático era assim mesmo, cheio de desilusões e perdas.
Os grandes escultores quando olham um bloco maciço de pedra, dentro dele já vislumbram a escultura que está por nascer. E mesmo ainda não sendo real aos olhos do vulgo, para o artista ela já existe. Talvez porque na sua mente, as estátuas já tenham figura definida, ainda que “dentro” da forma bruta do bloco inteiro de pedra. O trabalho do artista não é esculpir, propriamente, mas retirar o excesso de pedra, eliminando o desnecessário que impede que a estátua também seja vista por outros olhos. Aos poucos, bem aos poucos, na Senda da Iniciação, nossa natureza vai sendo desvelada pela contínua perda daquilo que nos é supérfluo. Não é necessário lamentar uma desilusão do caminho, do mesmo modo que o artista não chora à pedra retirada do bloco inteiro. Quanto ao Reino, ou ao grau de Neófito, o mesmo acontece. Quem sabe não sejam as primeiras perdas, embora lamentadas, o excesso retirado pelas mãos do Grande Artífice. É parte do supérfluo que nossa vida acumulou como ego.
Uma das maiores realizações espirituais que um Neófito pode pretender é a visão de seu Sagrado Anjo Guardião. Esta visão, contudo, mesmo podendo ser de rara beleza para aquele momento, não costuma ser nítida. Acontece que os véus que ainda estão entre esses dois pólos – o Iniciante e o Iniciado – obscurecem e distorcem sua realidade maior. O avanço, entretanto, no Caminho do Conhecimento faz com que tais véus sejam removidos, um por um, até que toda majestade da visão do Anjo seja perfeita. O último véu a ser removido é tão somente tudo aquilo que separa o Adepto de Seu Anjo. Uma vez removido, seu Conhecimento é, então, a perfeição pela qual ele tanto trabalhou.
E não seriam esses véus análogos ao excesso de pedra que impede os olhos do vulgo de vislumbrarem a estátua dentro do bloco maciço? Aos poucos, pedra após pedra, véu após véu, o que está sendo retirado vai expondo, finalmente, sua beleza. Não seria, então, de todo errado dizer que a grande dádiva oculta está condicionada à capacidade do Adepto de se livrar daquilo que ele possui e que é desnecessário, e não em obter um algo mais. Sim, as conquistas podem representar uma indesejada acomodação espiritual.
Isso remete a uma outra imagem associada à Esfera de Malkuth, o Reino: nesta imagem, encontra-se uma jovem mulher, coroada e sentada em um trono. Se, por um lado, esta efígie oferece a soberania de um reino conquistado, pelo outro, faz lembrar de um certo rito de iniciação, onde o Candidato, após terem sido cumpridas todas as suas provações, é convidado para sentar-se em um trono, ricamente decorado. Dependendo da reação do Candidato, o rito continua ou não. Se o Candidato entendê-los, tanto a coroa quanto o trono, como meros logros materiais, provavelmente dali ele nunca saia. Outrossim, toda nova conquista, representa mais um degrau a ser ultrapassado. Nesse sentido, o Trono da Esfera de Malkuth, apesar de ser um passo obrigatório ao Iniciando, nunca deverá ser seu descanso, pois nesse caso, representará estaticidade e morte. Isso é bem demonstrado pelas primeiras conquistas do Candidato e a própria visão do Anjo pode determinar a sua ruína.
Mesmo com todas essas idéias em mente, eu simplesmente não conseguia afastar a tristeza e a decepção de algumas das revelações que eu obtivera.
Agora eu estava quieto, na varanda de minha casa de campo. Meu cachimbo aceso e um pouco de fino conhaque eram meus únicos companheiros naquela noite. Juntos, contemplávamos um magnífico luar que já ia alto. A neblina, todavia, fazia com que o brilho da Rainha da Noite se tornasse fosco, dificultando a perfeita visão dos contornos lunares. O ar frio da montanha e a ação dos meus companheiros da noite iam, bem aos poucos, fazendo com que eu relaxasse, deixando minha mente livre para qualquer pensamento mais afoito dela aflorasse.
Nostalgias me chegavam. Brotavam lembranças ora de meu primeiro encontro com o simpático senhor que veio a ser o meu instrutor, ora dos principais pontos do meu aprendizado dentro da Ordem. Tudo era relembrando. Como se eu estivesse com o olhar fixado em algum ponto de um córrego qualquer, via o passar do contínuo movimento das águas. Assim, ia recordando o contato com as primeiras instruções, os exercícios e as práticas mágicas, o yoga. Repassava os ritos com pentagramas e hexagramas, há muito memorizados, além das quatro adorações diárias. Tudo provocava um sentimento estranho, mas agradável. Minha infantil decepção como “mistério do ciclo de Abraxas”, meus Probacionistas, o comportamento deles, ver alguns cometendo os mesmos erros que um dia foram meus também eram memórias agradáveis de se ter. Ri um pouco ao me recordar de meus anseios em montar “minha própria Ordem” e de meu encontro com o lunático amigo ascensionado. Sentia-me bem tranqüilo, apesar do pensamento “será que eu havia perdido tudo aquilo? Será que foi tudo em vão?”. Tais questões chegaram a me provocar uma rápida tristeza. No entanto, um sentimento de alívio eu começava a sentir.
Quando alguns valores perdem a excessiva importância que nele depositamos, parece que então passamos a caminhar com maior leveza. Dessa forma, alguns aspectos deixaram de fazer parte de mim, como se nunca tivessem habitado a casa de meus anseios. Aspectos do tipo “estar ou não estar” fazendo parte de uma linha direta de iniciação, “fazer parte” de ordens e outros grupos de estilo semelhante, não mais se deter em “enigmas cabalísticos” e não se iludir com as pompas cerimoniais que algumas situações oferecem. Tudo isso fora deixado para trás, por mérito único do Caminho trilhado. Bendito seja o Caminho!
Neste preciso momento me ocorreu a lembrança de alguns outros ocultistas conhecidos meus. Alguns que se encontravam tontamente envolvidos e embaraçados com as pompas de certas posições hierárquicas dentro de algumas ordens. Qualquer um pode concluir que o excesso de adorno exterior talvez seja o principal obstáculo ao bom desenvolvimento espiritual de alguém. Não pude deixar de evitar uma boa gargalhada quando o vaidoso pequeno pavão do quintal do meu vizinho soltou um apavorado grito noturno. Talvez um pequeno animal notívago o tivesse pegado de jeito. Ora, um brinde às boas coincidências da vida!
Recuperando-me do riso inesperado, passei a respirar de modo profundo e pausado. Um pouco de pranayama cairia muito bem, ainda por cima quando combinado com o cachimbo e o conhaque.
As lembranças continuavam e com elas um renovado sentimento de busca também chegava. Verdade seja dita, se algo tinha permanecido em meu íntimo, esse algo era o próprio desejo de continuar aprendendo como se aquele instante fosse o primeiro passo da minha jornada. E ele de fato era meu primeiro passo.
Olhei para o céu com um restaurado sentimento de euforia. Curiosamente, a névoa, que antes era intensa, agora começava a se dissipar, permitindo que a Lua se mostrasse perfeita, intensamente brilhante. A neblina! Minha intuição alertou-me: não seria ela mais um véu? Sim, gerúndio real: um véu estava sendo removido. Se tal fora feito por minha vontade ou não, isso não era importante naquela hora. Apenas sabia que a fria madrugada me oferecia aquele espetáculo e eu estava sinceramente grato.
A névoa que encobria a Rainha da Noite fora totalmente dissipada. Do mesmo modo, naquele exato instante também fora removido o Véu da Lua, do Fundamento, o meu próximo degrau, a Esfera de Yesod. Um novo Grau havia sido alcançado: Zelator. Um reinício.
Minha nova jornada começava ali. Outro passo a ser dado e conquistado. Logo, certamente, outro degrau a ser superado.
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Hoje 04 de julho é sempre um dia significativo para mim…Coincidências a parte, passei a seguir ‘Scribatus’ e agora lendo ‘Lembranças de um Neófito’
confirmei minha opção de leitura agradavél ao espírito ao final de um longo dia de atividades profissioal
.Mencionastes Humbert Eco. Em ‘O Nome da Rosa’ tal a associação me veio a mente:” ora Guilherme Baskeville, ora o jovem adson de Melk..” -.Ao fim da Vida, velho e esperiente ‘Adso’ escrevia suas memórias.
“Eu”, o leitor que vivia cada momento da aventura do saber, da saudavel soberba, ‘perdoavel’ da erudição, hoje em parte a revivi…
A muito tempo nos Sites da Vida “wordl Web” .Não encontro pequenas jóias de escritos como o que postastes, não só pelo tema e seus meandros, mas pela Arte…
Em alguns pontos me vi, também nos Sebos da Cidade, garimpando um velho
‘pergaminho’, nunca encontrei alguem significativo ao que buscava, mas muitas vezes era encontrado por aquele que no íntimo almejava…Em certo grau todos somos como o ‘amigo Lunático’, sendo ao contrário, não seriamos
pensadores inquietos…mas a vida segue e as experiências se fazem presentes.
Muito me agrada boas leituras, cada vez mais rara…sempre que o tempo me permitir vonto ao espaço.
Grato,
Velhoscriba Jay que perdeu os óculos a dois dias, mas compensada as dificuldades de leitura e escrita.
Em Tempo…
è Como se fosse “Thifereth’…ou “Shin’
Jay . . .
Obrigado.
Parabéns pelo texto…
ansioso pela próxima parte!
Sincronicidade, assim falo de seu texto =)
Parabéns pelo texto incrível!
E por que meu relato nunca esteve aqui, erro meu nessa internet cheia de abismos, quando não é o corretor ortográfico a escrever o que bem entende em nossos textos, são as mensagens que deixamos que entram por buracos. Hoje por acaso resolvi repassar por essa porteira e percebi que não tinha nada que registrasse minha passagem pr aqui. Fico pensando será que foi no “Magik”, era ess o nome ou coisa parecida. Abraços Mestre!